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terça-feira, fevereiro 17, 2004

Do Pai, do Filho, do Irmão, do Amor e do Sangue Deles

Pai e Filho, de Alexander Sokurov
O Seu Irmão, de Patrice Chéreau
O Grande Peixe, de Tim Burton


Destes três filmes unidos pelo signo do sangue, pela exploração profunda do universo masculino entre homens que partilham o mesmo sangue, pulsante, físico, por vezes brutal, geralmente pouco explorado pelo cinema, só o filme de Tim Burton se encontra ainda infelizmente em exibição. Pai e Filho, segundo tomo da trilogia familiar encetada por Sokurov com o portentoso e inesquecível Mãe e Filho, com exibição discreta em Lisboa, só para aficionados do herdeiro de Tarkovsky, é um filme único, encerrado sob a sua própria beleza como o amor do pai pelo filho e do filho pelo pai se confina ao universo fechado do seu próprio afecto e passa para o lado do mito, do impossível, do inexpugnável, porque mais nada importa para além dele. Filmado como se a luz opaca fosse a alma que assenta sobre os corpos e os fizesse dialogar entre si, surpreendentemente físicos, como um só corpo, o outro de si. Sukurov, com Pai e Filho realiza um filme que se vê e sente quase como uma experiência religiosa. Se o erotismo da magnífica cena inicial com a fusão dos corpos nus dos actores, envolvidos fortemente num feixe de carne, veias, sombras e respiração animal é campo de uma representação assumidamente corpórea, como se um nascesse do outro, a cena funcionando como a representação física do amor filial, serve apenas, para além da óbvia provocação estética, como forma de diminuir a distância que medeia um corpo do outro corpo e os aproximar da unidade da alma, de um mundo interior que nos escapa. Cineasta espiritual por definição, Sukurov filma a história do amor filial entre um pai e um filho pertencente a um plano mítico inatingível ao comum dos mortais, com laivos biblícos, como um longo e austero poema visual, recorrendo a uma Lisboa transfigurada em cidade russa, com uma beleza e luz que não lhe julgaríamos possíveis, utilizando como recurso estético primordial neste filme as influências da pintura de Turner e de outros pintores da escola europeia do Século XIX. Morta a Mãe, pai e filho vivem a memória da ausência, prenúncio da separação ou do reencontro do outro, inseparáveis no amor e afastados pelo medo. Inesquecíveis os corpos dos actores, o do pai, de uma carnalidade brutal, muscular e rude e o do filho, belo, límpido e sacrificial, no filme mais espiritual de Sukurov.

O Seu Irmão, de Patrice Chéreau é já um dos melhores filmes estreados em Portugal em 2004, com uma exibição mais do que discreta nos circuitos comerciais e destinado a ser pertença apenas de alguns. Debruçando-se, como em Pai e Filho sobre o amor entre dois homens pertencentes à mesma família, neste caso dois irmãos, Chéreau leva-nos a uma viagem brutal à degradação de um corpo que caminha impotente em direcção à morte, não como mero exercício de revolta mas como desejo de vida, num realismo cru e directo, sem complacências ou concessões estéticas. Thomas procura Luc quando sabe que pode morrer a qualquer instante, vítima de uma doença sanguínea incurável. Luc, o irmão mais novo, reencontrando o irmão acompanha-o no doloroso processo de morte, assistindo à degradação do corpo de Thomas e permitindo-se amá-lo na doença, encara a sua própria morte e os seus próprios medos, revendo-se no corpo do irmão, partilhando-lhe o sangue, o afecto e o amor. Impressionante a cena em que as auxiliares de enfermaria preparam, sob o olhar de Luc, o corpo nu de Thomas para a operação, virando-o, rapando-lhe os pêlos do peito, das pernas, do púbis, como se este fosse uma mera metáfora humana, um corpo esvaziado e reduzido à irrredutibilidade da doença. Thomas, partilhando o mesmo sangue de Luc, mas marcado pela inevitabilidade do fim, procura neste a última plataforma do amor, antes de ceder à morte e rebentar em sangue contra as rochas batidas pelo mar, porque ainda habitado pela vida.

O Grande Peixe, de Tim Burton, retoma o universo particular do realizador,apresentando-nos um filme que oscila entre a estranheza, a fábula e o sentimental. Burton, debruça-se, na essência, sobre o reencontro de um filho com o pai, sobre a herança afectiva, a identidade e a memória da infância, o aceitar do amor, da distância e do outro, intercalando o melodrama com o eclodir de uma realidade alternativa que vai abrindo progressivamente uma fissura na realidade anódina do quotidiano, constituindo o let motiv do desenrolar da acção, contanto a verdadeira, ou noutro perspectiva, a falsa história de Edward Bloom.Tim Burton, realiza assim um filme de pendor estranhamente clássico, entrando com contenção nos caminhos do melodramático, maravilhosamente inclassificável, que nos arrasta para um caleidoscópio fabuloso de histórias e imagens de contos de fada onde Ewan McGregor, no papel de Edward Bloom, caixeiro viajante, vive as mais fantásticas aventuras, misturando o imaginário das histórias infantis com o surreal, o kitsch e o espaço mítico. É soberba a cena final em que o filho, aceitando finalmente o pai, perde as referências racionais e assiste à morte deste numa cama de hospital, subjugando finalmente a realidade à emoção, carregando o corpo do pai nos braços, para o levar a morrer simbolicamente no rio, como uma fábula onde a morte não existisse e fosse apenas um grande peixe nadando eternamente sob as águas.


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