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segunda-feira, março 22, 2004

Fiant Lvminaria In Firmamento Celi

excerto de um livro perdido de Luis Manuel Gaspar

(...) Menina caída ao tanque,
não há cão vadio ou pedra certeira
que não replique nos lençois sua tez agoniada.
Quem a vai chamar, para outra vez se perder
com os olhos furtivos que apagam meia sombra?(...)


Lvminaria, Luis Manuel Gaspar, frenesi,1991

sábado, março 20, 2004

O Coelho Da Pâscoa

The Passion of the Christ, de Mel Gibson


se viesse a conhecer o Mel Gibson, provavelmente detestá-lo –ia, fugiria da sua presença como o diabo da cruz, por-me-ia a milhas assim que pudesse. no entanto não posso deixar de lhe reconhecer uma coragem inaudita ao conceber, produzir e realizar este filme. a visão do filme de Gibson, profundamente maniqueísta, conservadora, religiosamente retrógrada, de um fanatismo religioso assumido dá-nos no entanto, sem margens para dúvidas, a verdadeira essência do cristianismo: pecado, sofrimento e expiação. o cristo gore de gibson, sem qualquer dimensão espiritual, procura unicamente retratar realisticamente o processo sacrificial do corpo de Cristo, sem grandes considerações espirituais ou envolvimentos dramáticos. a fraqueza do filme é assim a sua maior força, enquanto objecto cinematográfico, trazendo-nos uma visão crua e pornográfica da violência abatida sobre o corpo de cristo, obrigando-nos a participar nela a cada momento e sem concessões, sob pena de o filme nos passar ao lado, a observarmos com minúcia cada chaga, cada bocado arrancado à carne, cada golpe, cada flagelação, cada fustigação abatida sobre o corpo, até sucumbirmos à dimensão da carne supliciada e nos deixemos inundar inexoravelmente pelo sangue derramado. filme construído unicamente sobre o processo de crucificação de Jesus e destinado a violentar-nos internamente, e que faz uma apologia incondicional do sofrimento como instrumento de salvação do homem, é salvo do niilismo e da ignominia pelo contexto mítico das escrituras, pois, se retiramos o suporte religioso no qual se baseia o filme, estaríamos apenas em presença de um objecto fílmico sobre o processo realista do flagelamento e suplicio gratuitos de um corpo até à morte final pela crucificação. Gibson opta assim, por uma encenação teatral, artificial, rude, onde todos os personagens bíblicos, como por exemplo maria e maria magdalena, se destinam apenas a dar espessura física ao mecanismo de supliciação, servindo, perante os nosso olhos de meros condutores para o sofrimento incomensurável de Cristo, ora lavando o chão empapado de sangue com panos brancos ou beijando-lhe os pés ensanguentados. filme profundamente centrado nos aspectos sadomasoquistas do cristianismo, elege o corpo desfigurado de um Cristo sobre humano, reduzido à sua carnalidade ensanguentada, obrigando-nos a enfrentar o horror e a violência sem concessões. se não atendermos ao maniqueísmo cortante do filme, a paixão de Cristo constitui um filme único, destinado a ser odiado ou amado, mas com o enorme mérito de nos obrigar a enfrentar o horror da violência humana, independentemente de perspectivas religiosas. Um filme iconográfico, cru e terrível que possibilita uma reflexão cortante sobre a dor,a religião e o homem.


quarta-feira, março 17, 2004

perdemos as palavras. lentamente. carregadas de silêncios. uma a uma. em queda. por parágrafos. roçavam por tudo o que era substantivo. casa. tecto. quarto. cama. árvore. difíceis em noites atadas por nós. resistentes. de tal modo que abriram uma ferida vertical.falavas de muito longe. só tarde percebi que eras tu. fui o último a partir.

Emanuel de Sousa, Eurídice
Quetzal Editores

sábado, março 13, 2004

Uma Campainha De Vento No Inverno

Uzak – Longínquo, de Nuri Bilge Ceylan

Este filme de um realizador turco, Nuri Bilge Ceylan, oferece-nos uma Istambul gélida, coberta pela neve, um rio pesaroso, as águas batidas nos paredões, espaços desertos com o lixo trazido pelo vento, atmosferas melancólicas onde a tristeza é no entanto vulgar encontrando-se nas mais ínfimas coisas, e nos faz sentir observadores do vazio, enquanto a cidade e os seus habitantes permanecem sós. Mahmut, fotógrafo na meia idade abandonado pelo desejo e pela vida caminha inexoravelmente para a solidão, deambulando solitário por bares, impotente perante as fugas afectivas e o soçobrar da memória, a perda de referências e um autismo crescente entre ele e o mundo. Mahmut troca TarkovskY pela pornografia, a arte pelo vazio interior, pelo não afecto. Condenado a fotografar azulejos para o catálogo de uma fábrica é confrontado com a crescente perca de referências e estagnação interior, intelectual, artística e afectiva. O declínio adivinhado de Mahmut contrasta com a inocência e sopro de vida que ainda se vislumbra em Yusuf, primo de Mahmut, que despedido da fábrica onde trabalhava decide vir a Istambul com o sonho de se tornar marinheiro, ganhar dinheiro e descobrir o mundo, acabando por se instalar na casa de Mahmut, invadindo-lhe o espaço e perturbando os seus rituais de solitário. Mas, rapidamente Yusuf descobrirá o lado impossível do sonho e pressente o medo, a incoerência de um mundo sem afecto e sem referências, nas suas deambulações erráticas por uma Istambul desolada e agreste. Yusuf, inadaptado e incapaz de penetrar no mundo fechado de Mahmut, parte finalmente, deixando Mahmut entregue à sua solidão, numa casa com vista para uma Istambul rude e cinzenta, entre a memória de Tarkosvky, o passado e um quotidiano anódino, embalada por um campainha de vento, à varanda, como uma voz que se pudesse interpor entre o vazio e a melancolia, o vulgar de um quotidiano perdido em si mesmo e o desespero.


terça-feira, março 09, 2004

A Viagem

existe um dorso partido que separa as casas dos quintais, os cães ferrugentos a babarem bermas, nós a lanhar a curva, levemente a estalar, ardidos. o cigarro aceso à boca, os coelhos embutidos nos caminhos, insectos a explodirem no vidro, o meu braço picado dos cardos, o automóvel azul no meio do ar. nós feridos do azul imenso. eu a falar-te do céu como se fosse agora o suicídio das nuvens.

A Biblioteca

gosto de livros antigos, livros com pó, livros destruídos pelo tempo. na semana passada visitei uma biblioteca assim, perdida no tempo.3 andares, estantes altas de madeira escura, paredes de pedra, o sol escondido numa clarabóia embaciada, as lombadas dos livros como acidentes na pele, cerrados em fileiras, as folhas amarelas, o cheiro. passo-lhes as mãos nas lombadas, sinto-os ásperos, vivos como animais, querem-me, chamam-me para junto de si. esperam, fechados, lombada com lombada, alguns tristes, tumulares, as palavras enterradas neles, as minhas mãos nas palavras deles. deixo-os. permanecem sob os mortos como uma última voz.

sexta-feira, março 05, 2004

O Pecado Sob As Águas

Mystic River, de Clint Eastwood

Os diasfelizes conseguiram finalmente ver o Mystic River. O cinema velho, as cadeiras já na terceira pele, o escuro poeirento, o café tomado no restaurante gorduroso em frente ajudaram a entrar no universo de uma Boston sorumbática, gélida e perversa onde as personagens de Eastwood se movem entre a vingança e o remorso, a culpa e a inocência, o pecado e a expiação. poderosamente atmosférico, o filme de Eastwood, oscilando entre o thriler e o filme negro, retrata sem pudor, a ténue linha existente entre a perversidade humana e o seu oposto, revelando-nos um intenso tecido cicatricial marcado pela dor, pela solidão e pelo ódio. mergulhando as personagens interpretadas magnificamente por Sean Penn, Tim Robbins, e Kevin Bacon num ciclo de violência interna, Eastwood retrata a profundidade do mal que aflora à superfície do quotidiano, habitáculo do mal, para o mergulhar depois sob as águas como se estas fossem um falso alívio, uma expiação, a continuação das sombras. o filme mais negro e desesperado do realizador e um dos melhores filmes do ano que passou.


quarta-feira, março 03, 2004

O Meu Corpo Como se Fosse O Cálice O Meu Sangue Como Se Fosse O Vinho

a Ana Paulo Inácio escreveu um dos livros de poesia mais bonitos que tenho na estante, pudesse eu te-lo no coração, que é bem maior do que um livro

na mão a faca luminosa
a mulher dirige-se
pla ogiva do portão
à guisa do vitral
o sangue faz-se vinho
no avental às flores as manchas
o vinho faz-se fel
no vívere morto separam-se os intestinos
jaz ainda quente o corpo
nas lajes o sol cai
na mulher exacata, o suor
cujas vértebras coladas contra a camisa


Ana Paula Inácio, As Vinhas de Meu Pai,Quasi Edições 2000

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