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domingo, julho 04, 2004

UMA PEDRA NO CORAÇÃO

Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera
Coreia do Sul - 2003
103 min - Drama

Yeong-Su Oh (Actor / Actriz)
Kim Ki-Duk (Realização)
Kim Ki-Duk (Argumento)
Kim Ki-Duk (Actor / Actriz)
Jong-Ho Kim (Actor / Actriz)
Ha Yeo-Jin (Actor / Actriz)


I intend to portray the joy, anger, sorrow and pleasure of our lives through four seasons and through the life of a monk who lives in a temple surrounded only by nature on Jusan Pond. Five stories of Child Monk, Boy Monk, Adult Monk, Elderly Monk, and old Monk will coexist with images of each season. The changing qualities in living human beings, the meaning of maturity in our lives that are formed and how they develop, the cruelty of innocence, the obsession in desires, the pain in murderous intentions, and the emancipation in struggles …
Kim Ki-Duk


Por vezes existem imagens, cores, sons, silêncios, rostos, que nos entram pelos olhos adentro, contagiantes como uma doença, uma paixão que se apodere do corpo para perfurar a alma, uma racha no coração, que nos faz transbordar de claridade, luz e contemplação. O novo filme de Kim Ki-Duk, depois do visceral e atormentado "The Isle" afoga-nos num universo meditativo onde a natureza e o tempo assumem inexoravelmente um papel transcendente perante a fragilidade e efemeridade do homem, e onde a dor e o prazer, o conhecimento e a ignorância, a inocência e a morte, a obsessão e o desejo, se confrontam, perante a passividade eterna do céu, das árvores, das águas, das rochas e das montanhas. Filme de um lirismo extremo, avassalador, prende-nos para sempre os olhos ante a beleza de uma simplicidade extrema e devastadora, como se de repente a perfeição poderosa da natureza e dos seus ciclos imutáveis fosse algo que nos esmagasse e nos confortasse, matando as palavras, fazendo unir o silêncio à eterna serenidade da alma. Filme de uma simplicidade extrema, espiritual e religioso, onde o conhecimento e a libertação ascética iniciam o homem no conhecimento das verdades imutáveis da vida. Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera, filme de uma fotografia e luminosidade poética possante e envolvente, rouba, durante toda a sua duração, o espectador ao quotidiano da vida, envolvendo-o num estado encantatório, ondulante como o devir das estações no coração do tempo, entregando-o às montanhas, à neblina, às águas, à natureza primordial.

O palco de todo o filme é um enorme lago, rodeado de montanhas e coberto pelo céu, onde árvores milenares emergem vivas, semi afundadas nas águas, rodeado de uma vegetação verdejante, criaturas da natureza, regatos cristalinos, quedas de água e rochas agrestes. Da margem, duas portas de madeira, decoradas com duas figuras religiosas, abrem-se para o lago, como uma cortina que desvela a realidade e iniciam o espectador na passagem do tempo, entre as estações, distanciadas por vários anos, abrindo-se para os personagens e para o espectador, no início de cada estação. No meio do lago um pequeno templo budista, suspenso sob as águas, como uma ilha flutuante. No templo, um velho mestre budista e o seu discípulo, ao qual o velho monge procura ensinar as verdades essenciais da vida. É neste cenário, um templo de madeira no centro de um lago, onde duas figuras de pedra olham as margens, enquadrado por umas portas de madeira iniciáticas, que as personagens do filme vão interagir, deslocando-se num pequeno barco de madeira entre as margens do lago e o templo, ao ritmo das estações e da vida.


Na primeira estação, a Primavera, o velho mestre procura ensinar o seu discípulo, ainda criança, sobre os principais ensinamentos budistas e a inevitabilidade da dor. Figura omnipresente, o mestre budista contempla impassível, o despontar da perversidade infantil, ao observar o seu discípulo enrolar uma pedra, atada por um fio, primeiramente a um pequeno peixe, depois a uma rã e ainda a uma serpente. Atadas e obrigadas a carregar uma pedra, as pequenas criaturas da natureza, impossibilitadas de se moverem, sofrem, arrastando interminavelmente o peso da pedra. Na manhã seguinte, o velho monge, ata com uma corda uma pedra ao corpo da criança, seu protegido, seu discípulo, que imediatamente reconhece a maldade praticada. O monge diz-lhe então para encontrar e libertar os três animais do seu fardo, acrescentando que, se algum deles tiver morrido, carregará aquela pedra no seu coração para sempre. A criança, igualmente carregando a sua pedra, literalmente, encontra os três animas mas só um deles se encontra ainda vivo, pois o peixe encontra-se morto no fundo das águas e a serpente coberta de sangue, esfacelada nas pedras, também morta. A criança descobre então a inevitabilidade da dor e o fardo da vida, bem como a consequência no mundo de cada acção praticada, e chora, observada pelo mestre, no seu primeiro e brutal contacto com a dor. De uma simplicidade impressionante, e para além de qualquer mero ensinamento moral, toda a sequência, onde a intensidade emocional vive de pequenos apontamentos de uma fragilidade tormentosa, impõe-se pela violência do despontar da dor e do início do ciclo imutável da vida, onde o sofrimento e a morte, enquanto realidades dessa mesma vida, acompanharão para sempre o pequeno monge.

A segunda estação, o Verão, a que o espectador acede depois de abertas novamente as portas para o esplendoroso lago, como um ritual que se vai prolongar ao longo de todas as estações, apresentam-nos uma das mais belas sequências do filme onde o discípulo do mestre, agora com cerca de dezassete anos, vai perder a inocência e conhecer os prazeres do corpo com a rapariga que o velho monge aceitara, no templo, para curar de uma doença. Capítulo de uma enorme beleza, emocionalmente tocante, torna inesquecíveis os passeios de barco entre os adolescentes apaixonados, sob a luz das águas, os olhares trocados no exíguo espaço do templo, à noite, enquanto o mestre dorme, a chuva de verão, as cenas da cópula, (precedidas metaforicamente pelas duas cobras que o jovem discípulo encontra em acasalamento), entre as pedras, no barco, com a inocência do primeiro amor, sem troca de palavras, são extremamente simples, mas de uma eficácia comovente, pela naturalidade com que Kim Ki-Duk filma o progressivo envolvimento dos amantes. O capítulo, prenúncio da morte, termina com o regresso da rapariga à sua casa, já curada, e um novo ensinamento: a luxúria desperta o desejo de possuir, e a possessão conduz ao assassínio em defesa daquilo que se possui. O jovem discípulo, possuído pelo desejo, abandona o templo e o mestre e vai procurar no mundo a satisfação do prazer a que não consegue fugir e onde encontrará a perdição espiritual.

No terceiro capítulo, correspondente ao Outono, o jovem monge, já adulto, regressa ao templo, despido da inocência primordial, carregado de ódio e de sangue, pelo que passará por um processo de purificação, espiritual e corporal (fabulosa a imagem do corpo do discípulo pendurado por cordas e vergastado de sangue, suspenso no ar), antes de ser levado a cumprir uma pena como punição pelo assassínio cometido. Neste capítulo, é memorável a imagem quase surreal da pintura do Sutra libertador na madeira do chão do templo com a cauda do gato, e despois gravado na madeira com a faca do crime e posteriormente pintado como um quadro, uma caligrafia libertadora, uma oração em madeira. O capítulo termina com o auto imolamento do velho monge, no barco, sob uma pira de fogo, onde após a sua morte uma serpente desliza sob as águas, em direcção ao templo.

Na última estação, o Inverno, as portas abrem para um lago gelado, de uma beleza árida e impressionante, e assiste-se ao regresso do discípulo do velho monge, (aqui interpretado pelo próprio realizador) que avança para a redenção final e para o cumprimento do ciclo imutável do mundo, descobrindo o velho barco afundado sob o gelo e constatando a morte do mestre. Neste capítulo, encerra-se o ciclo, ao ser deixado ao seu cuidado uma criança, de tenra idade, que será o seu discípulo, à semelhança de si próprio. A mãe da criança, que morre afogada ao cair num buraco de gelo, vai precipitar a brutal redenção (aproximando-se aqui o budismo do catolicismo, num acto de contrição) do discípulo regressado que arrastará, atada ao seu corpo, uma enorme pedra pelas montanhas cobertas de neve, para ir depositar a estátua de uma divindade num rochedo de uma montanha distante, mas de onde se contempla o templo e as águas do lago, que ficarão sob o olhar da divindade, no ciclo imutável da natureza e na sucessão das estações. Consentâneo com a eternidade do ciclo da vida, o novo monge prepara-se para iniciar o seu papel, numa nova Primavera.

Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera, não é um filme perfeito, não será sequer uma obra-prima, mas perfura-nos de beleza e simplicidade, não escolhe o sempre perigoso didatismo religioso (lembre se que o realizador, católico de formação, inventou os cerimoniais budistas apresentados no filme, assim como as decorações e objectos do templo, que foi totalmente construído sob as suas indicações), é, sob a sua aparente simplicidade, dono de um simbolismo não imediato (por exemplo a cada estação corresponde um animal, na Primavera um cão, no Verão um galo, no Outono um gato, no Inverno uma serpente, e ainda no epilogo, uma tartaruga; a ausência de nomes para todas as personagens, o rosto escondido em panos da mulher que entrega o filho, a pedra como metáfora da dor existencial, mais do que física) e deslumbra-nos com uma espiritualidade a que acedemos sem fazer qualquer esforço e que abandonamos com dificuldade, quando o filme acaba, e as luzes da sala se acendem, como se ficássemos com uma ausência qualquer, uma dor indefinida, uma pedra no coração.





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