sábado, julho 24, 2004
A MÂE-DEUS E O FILHO MASTURBADOR
Aviso à navegação: dado o período estival que se atravessa e perante a iminência de férias, esta crítica sobre o filme de Christophe Honoré, Ma Mère, não é para ser levada a sério. Toda a gente sabe que essa magnífica fonte de gelo expressiva que é Isabelle Huppert (sem dúvida a minha actriz preferida, desde que a vi, completamente abismado, em Malina, fabuloso filme de Werner Shroeter) pertence aos domínios do Inverno e o Verão começa a aquecer-me o corpo e a desviar-me o espírito para o centro do sol. O filme de Honoré, rasa a fundura do abismo, mas apesar disso não nos compele à queda. Exercício que se pretende brutal, falha no entanto no aprofundamento da ferida que deixa à superfície. Baseado no Livro de Bataille e no texto escandaloso e libertador de Ma Mère (publicado entre nós pelos Livros do Brasil, com o título Historia do Olho e minha Mãe) traz-nos um cenário hedonista (aqui o bordel do mundo é uma ilha turística), e moderno onde os corpos procuram a sua salvação e caminham na direcção do desejo e da morte, como na noite, o fazem as mariposas, em direcção à luz. Fala-se aqui, portanto do Eros e do Thanatos e das profundezas do espírito à superfície da carne, da libertação do desejo das entranhas onde parece esconder-se. Honoré filma aqui o sexo, no entanto, sem a mínima atracção pela sensualidade, o que resulta, quando a câmara procura os corpos, em planos onde esses mesmos corpos são retalhados (até pela forma abrupta do corte entre as cenas) na imagem, numa anti estética do erotismo e da pornografia, enquanto olhar. Aparentemente a acção desenrola-se entre uma afinidade incestuosa entre mãe e filho, que caminha progressivamente para um desfecho trágico, mas, sob a superfície, o que o filme nos traz é a morte do desejo pelo encontro inevitável com a morte. E o desejo, permitindo-se a perversidade, caminha para além dela, até ao fim do túnel onde se espera Deus. Deus que se encontra mais facilmente pelo desvio da carne do que pela purificação do espírito. História da perversão de um filho adolescente (Louis Garrel), pela mãe (a perturbadora Isabelle Huppert), o filme aborda a substituição de Deus pela mãe, igualando-se ambos na ausência. Significativa é a cena final em que o filho, ao observar o cadáver da mãe-substituida-a-Deus, se masturba e grita “mãe, eu não quero morrer.”.Minha Mãe, é pois um exercício de solidão e uma reflexão sobre a vida e a morte, sob o espelho do corpos. Isabelle Huppertt, apesar de aqui ou ali se pressentir que se encontra em velocidade de cruzeiro (sempre inultrapassável no entanto) enche o ecrã de um mau estar e de uma fragilidade embrutecida e Louis Garrel (fixe-se este jovem actor, que é um caso sério, apesar de parecer estar a especializar-se em cenas de masturbação), transmite uma inocência melancólica e convincente. Má Mère, é um filme que contudo ganharia se pudesse deslocar-se para fora das sombras da obra de Bataille e que poderia facilmente cair na enfatuação intelectual, sem as interpretações e os corpos de Huppert e Garrel. Para terminar, só quero dizer que afinal fiz uma critica mais invernosa do que pensava. Raios partam a Isabel Hupert!. Venham já duas margueritas , por favor.
Aviso à navegação: dado o período estival que se atravessa e perante a iminência de férias, esta crítica sobre o filme de Christophe Honoré, Ma Mère, não é para ser levada a sério. Toda a gente sabe que essa magnífica fonte de gelo expressiva que é Isabelle Huppert (sem dúvida a minha actriz preferida, desde que a vi, completamente abismado, em Malina, fabuloso filme de Werner Shroeter) pertence aos domínios do Inverno e o Verão começa a aquecer-me o corpo e a desviar-me o espírito para o centro do sol. O filme de Honoré, rasa a fundura do abismo, mas apesar disso não nos compele à queda. Exercício que se pretende brutal, falha no entanto no aprofundamento da ferida que deixa à superfície. Baseado no Livro de Bataille e no texto escandaloso e libertador de Ma Mère (publicado entre nós pelos Livros do Brasil, com o título Historia do Olho e minha Mãe) traz-nos um cenário hedonista (aqui o bordel do mundo é uma ilha turística), e moderno onde os corpos procuram a sua salvação e caminham na direcção do desejo e da morte, como na noite, o fazem as mariposas, em direcção à luz. Fala-se aqui, portanto do Eros e do Thanatos e das profundezas do espírito à superfície da carne, da libertação do desejo das entranhas onde parece esconder-se. Honoré filma aqui o sexo, no entanto, sem a mínima atracção pela sensualidade, o que resulta, quando a câmara procura os corpos, em planos onde esses mesmos corpos são retalhados (até pela forma abrupta do corte entre as cenas) na imagem, numa anti estética do erotismo e da pornografia, enquanto olhar. Aparentemente a acção desenrola-se entre uma afinidade incestuosa entre mãe e filho, que caminha progressivamente para um desfecho trágico, mas, sob a superfície, o que o filme nos traz é a morte do desejo pelo encontro inevitável com a morte. E o desejo, permitindo-se a perversidade, caminha para além dela, até ao fim do túnel onde se espera Deus. Deus que se encontra mais facilmente pelo desvio da carne do que pela purificação do espírito. História da perversão de um filho adolescente (Louis Garrel), pela mãe (a perturbadora Isabelle Huppert), o filme aborda a substituição de Deus pela mãe, igualando-se ambos na ausência. Significativa é a cena final em que o filho, ao observar o cadáver da mãe-substituida-a-Deus, se masturba e grita “mãe, eu não quero morrer.”.Minha Mãe, é pois um exercício de solidão e uma reflexão sobre a vida e a morte, sob o espelho do corpos. Isabelle Huppertt, apesar de aqui ou ali se pressentir que se encontra em velocidade de cruzeiro (sempre inultrapassável no entanto) enche o ecrã de um mau estar e de uma fragilidade embrutecida e Louis Garrel (fixe-se este jovem actor, que é um caso sério, apesar de parecer estar a especializar-se em cenas de masturbação), transmite uma inocência melancólica e convincente. Má Mère, é um filme que contudo ganharia se pudesse deslocar-se para fora das sombras da obra de Bataille e que poderia facilmente cair na enfatuação intelectual, sem as interpretações e os corpos de Huppert e Garrel. Para terminar, só quero dizer que afinal fiz uma critica mais invernosa do que pensava. Raios partam a Isabel Hupert!. Venham já duas margueritas , por favor.
DISCOS DE VERÃO 2
Não resisti a acrescentar à lista outro album de Henri Salvador, assim, sem intervalo. Jazz, bossa nova, Keren Ann, Benjamin Biolay e muito açucar de cana incluido. existe melhor para o verão? a música jardin D´hiver é dedicada à minha amiga Lebre. Vamos ouvi-la um dia numa esplanda com janela sobre o mediterrâneo? O Inverno a estalar no meio do Verão.
HENRI SALVADOR
Chambre avec vue
Jardin d'hiver
Chambre avec vue
J'ai vu
Il fait dimanche
La muraille de Chine
Jazz Méditerranée
Un tour de manège
Vagabond
Je sais que tu sais
Mademoiselle
Le fou de la reine
Faire des ronds dans l'eau
Aime-moi
HENRI SALVADOR
Chambre avec vue
Jardin d'hiver
Chambre avec vue
J'ai vu
Il fait dimanche
La muraille de Chine
Jazz Méditerranée
Un tour de manège
Vagabond
Je sais que tu sais
Mademoiselle
Le fou de la reine
Faire des ronds dans l'eau
Aime-moi
sexta-feira, julho 23, 2004
A BARATA
Hoje, ao acordar, encontrei uma pequena barata morta entre os lençóis. Ontem, caiu-me em cima do peito A Metamorfose, do Kafka, arremessado com violência da prateleira por um Proust pesado e enciumado. Antes de ontem recomecei a minha leitura de a Paixão de G. H., esse fabuloso livro da Clarice Lispector. Tudo livros com baratas. Como não acredito em lirismos fortuitos e cruzamento de coincidências quotidianas como metáforas da existência, hoje vou dedicar-me a limpar o pó, a arrumar o armário dos sapatos e a renovar a luz dentro das caixas de cartão com fotografias. Ainda assim, pequei no pequeno Gregor com os dedos e deitei-o pela janela fora, com algum remorso.
sexta-feira, julho 16, 2004
DISCOS DE VERÂO
Gosto da ideia de haver discos de Verão, assim como gosto do pensamento de haver discos de Inverno, discos de Outono, discos de Primavera. A mudança das estações, enganando-nos com a sensação de metamorfose que pomos no corpo e no espírito, possibilita-nos o engano de ir atravessando as estações como se fossem marcos importantes das nossas vidas que gostamos de recordar para sempre, como aos amores. No entanto, agrada-me pensar que existe um único Verão, um único Inverno, uma única Primavera e Outono, e que tudo o resto são simulacros, ilusões da nossa infelicidade ou tristeza. Assim, há que preencher as estações com música, discos, muitos discos, e deixarmo-nos iludir com a imensidão de muitas passagens pelo tempo, que, como afirma a Laurie Anderson, deveria ser em espiral, e não circular.Coisas da existência. Deixo aqui as minhas escolhas para este Verão, um de cada vez, entre discos novos e antigos, até ao Outono começar a mostrar a cor.
MA CHERE ET TENDRE
HENRI SALVADOR
1 - MA CHÈRE ET TENDRE
2 - VOUS
3 - C' ÉTAIT UN JOUR COMME LES AUTRES
4 - LE VOYAGE DANS LE BONHEUR
5 - TOI
6 - J' AI TANT RÊVÉ
7 - QUAND UN ARTISTE
8 - SANS TOI
9 - AILLEURS
10 - ITINÉRAIRE
11 - TU ES VENUE
12 - BORMES - LES - MIMOSAS
13 - DANS TES YEUX
14 - ALL I REALLY WANT IS LOVE
Condicões ideais de escuta:
Roupa: calções, camisa, roupa de linho, chapéu branco
Local: piscina, quarto com persianas cerradas, esplanada com vista sobre o mediterrâneo, ilha tropical, ex-colónia francesa
Horas: entre o fim da tarde e o começo da noite, de preferência com pôr-do-sol incluído; pode ser à noite se se estiver na praia ou na piscina
Companhia: imprescindível, mas pode ser substituída por uma revista de viagens
Duração: ouvir sempre de seguida, ou em caso de praia ou piscina, intercalar entre os banhos, mas nesse caso ouvir non stop, pelo menos durante 2 horas.
Actividades paralelas: fumar, cigarrilhas de preferência; sexo versão slow-core, livro pousado sobre o colo
Bebida: dry martinis
Gosto da ideia de haver discos de Verão, assim como gosto do pensamento de haver discos de Inverno, discos de Outono, discos de Primavera. A mudança das estações, enganando-nos com a sensação de metamorfose que pomos no corpo e no espírito, possibilita-nos o engano de ir atravessando as estações como se fossem marcos importantes das nossas vidas que gostamos de recordar para sempre, como aos amores. No entanto, agrada-me pensar que existe um único Verão, um único Inverno, uma única Primavera e Outono, e que tudo o resto são simulacros, ilusões da nossa infelicidade ou tristeza. Assim, há que preencher as estações com música, discos, muitos discos, e deixarmo-nos iludir com a imensidão de muitas passagens pelo tempo, que, como afirma a Laurie Anderson, deveria ser em espiral, e não circular.Coisas da existência. Deixo aqui as minhas escolhas para este Verão, um de cada vez, entre discos novos e antigos, até ao Outono começar a mostrar a cor.
MA CHERE ET TENDRE
HENRI SALVADOR
1 - MA CHÈRE ET TENDRE
2 - VOUS
3 - C' ÉTAIT UN JOUR COMME LES AUTRES
4 - LE VOYAGE DANS LE BONHEUR
5 - TOI
6 - J' AI TANT RÊVÉ
7 - QUAND UN ARTISTE
8 - SANS TOI
9 - AILLEURS
10 - ITINÉRAIRE
11 - TU ES VENUE
12 - BORMES - LES - MIMOSAS
13 - DANS TES YEUX
14 - ALL I REALLY WANT IS LOVE
Condicões ideais de escuta:
Roupa: calções, camisa, roupa de linho, chapéu branco
Local: piscina, quarto com persianas cerradas, esplanada com vista sobre o mediterrâneo, ilha tropical, ex-colónia francesa
Horas: entre o fim da tarde e o começo da noite, de preferência com pôr-do-sol incluído; pode ser à noite se se estiver na praia ou na piscina
Companhia: imprescindível, mas pode ser substituída por uma revista de viagens
Duração: ouvir sempre de seguida, ou em caso de praia ou piscina, intercalar entre os banhos, mas nesse caso ouvir non stop, pelo menos durante 2 horas.
Actividades paralelas: fumar, cigarrilhas de preferência; sexo versão slow-core, livro pousado sobre o colo
Bebida: dry martinis
quarta-feira, julho 14, 2004
ANTONIO GAMONEDA
La inexistencia es hueca como las máscaras y su visión es
lívida, pero tú oyes el grito de las madres del agua y acaricias
los ojos que vieron la inexistencia.
De "Libro del frío", 1992:
Pavana impura
La inexistencia es hueca como las máscaras y su visión es
lívida, pero tú oyes el grito de las madres del agua y acaricias
los ojos que vieron la inexistencia.
De "Libro del frío", 1992:
Pavana impura
domingo, julho 11, 2004
A PODRIDÃO DA ALMA
A FAMÍLIA SCHROFFENSTEIN
de Henrich von Kleist
Teatro do Bairro Alto - Cornucópia - (Lisboa)
“A desconfiança é a peste negra da alma”
A Família Schroffenstein, de Henrich von Kleist
Em cena até ao próximo dia 1 de Agosto, A Família Schroffenstein, peça do dramaturgo alemão Henrich von Kleist, magnificamente representada pelo Teatro da Cornucópia, e como habitualmente, encenada por Luís Miguel Cintra, conta também com cenários de Cristina Reis e Daniel Worm d'Assumpção, tendo sido traduzida do alemão por João Barrento. A Família Schroffenstein, constitui uma reflexão belíssima sobre a queda da alma ante o desejo, sob a insídia da suspeição e da vingança, o sacrifício do amor como redenção impossível de alcançar e a corrupção da natureza humana perante a inevitabilidade do destino, para onde a humanidade caminha, por sua própria perdição e ruína. Texto avassaladoramente pessimista, constitui uma obra-prima do romantismo alemão e simultaneamente uma reflexão sobre a danação humana e a impossibilidade da felicidade, retratando o falhanço dos ideais românticos perante uma sociedade inevitavelmente corrompida pela avidez, cobiça e posse. A peça de Kleist, sob um cenário medievo, rude, atravessado por luzes cruas e intensas, ou por uma escuridão dominadora, descreve, com uma eloquência e um lirismo exacerbados, eficazmente transposto do alemão para o português por João Barrento, a anatomia do processo de destruição da alma e a progressão do rancor no coração humano, como praga sem cura, aqui simbolizado pelo dedo mindinho decepado de uma criança, tenra de idade e recém afogada, origem de uma espiral de horror e assassinato sem sentido ou razão. Luís Miguel Cintra, atento a dificuldade desta peça, extremamente longa e densa, considerada frequentemente irrepresentável, opta por um encenação sóbria, monástica, acompanhando o minimalismo da cenografia, onde a palavra, como elemento de intriga, funciona como o despoletar de toda a tragédia e o lirismo presente em todo o texto o suporte sólido para o desempenho dos actores.
Um obscuro contrato celebrado entre os ramos de uma mesma família, os Rossitz e os Warwand, separadas geograficamente por um lago rodeado de montanhas, em que na falta de descendência de ambos os lados, o ramo familiar sem descendentes cederá ao outro a riqueza e o poder (que nunca surgem verdadeiramente nominados, quantificados, mas apenas como motivação abstracta dos actos, do despoletar do inconsciente sob a razão) surge como pretexto para o verdadeiro tema central da peça: a destruição progressiva do carácter pela angústia, pela dúvida, pelo rancor, como se a palavra pudesse ser um cancro que avança pelo corpo com uma única nominação (o nome, extraído, sob tortura, de um dos presumíveis assassínios do filho varão dos Rossitz ou o nome proferido por João, amigo de Otto) e o erro uma fagulha que acende o fogo, numa única faísca, queimando, em sofrimento, o coração humano, até à ruína e à cinza. Renovação do amor condenado, numa revisitação moderna de Romeu e Julieta, A Família Schroffenstein, debruçando-se sobre a inocência do amor, serve-se de ambos os amantes como cordeiros de morte, espaço sacrificial, ante-câmara da solidão e da condenação humana.Com efeito, ambos os amantes, travestidos, morrem trespassados pelos próprios pais, numa cena de comédia de enganos, que perversamente retira aos personagens a dignidade do drama, a imersão na metáfora da tragédia. O amor é impossível de resgatar o homem da perversidade e sucumbe à solidão humana e ao próprio destino traçado pela humanidade, onde a ausência de Deus torna impossível a libertação e a esperança. O erro, indissociável da palavra, como veneno, é destruidor da razão e permanece invisível ante o coração dos homens. Com efeito é um personagem cego que identifica o erro no reconhecimento do corpo dos filhos mortos que não são reconhecidos pelos próprios pais, que choram não já a morte dos filhos, mas a sua própria morte, o vazio existencial. Como escreveu Luís Miguel Cintra, a propósito desta peça “A dúvida destrói a personalidade, afasta o ser humano da natureza inicial, pura e generosa. A sociedade passa a mover-se numa teia absurda de negros pensamentos, inseguranças, remorsos, obsessões de vingança, cegas violências. E a palavra engendra o erro, afasta o homem de si próprio.
Henrich von Kleist (1777 – 1811), suicidou-se, aos 34 anos, com um tiro na boca, depois de ter disparado contra o peito canceroso da sua amante, na consumação de um pacto suicida.
A FAMÍLIA SCHROFFENSTEIN
de Henrich von Kleist
Teatro do Bairro Alto - Cornucópia - (Lisboa)
“A desconfiança é a peste negra da alma”
A Família Schroffenstein, de Henrich von Kleist
Em cena até ao próximo dia 1 de Agosto, A Família Schroffenstein, peça do dramaturgo alemão Henrich von Kleist, magnificamente representada pelo Teatro da Cornucópia, e como habitualmente, encenada por Luís Miguel Cintra, conta também com cenários de Cristina Reis e Daniel Worm d'Assumpção, tendo sido traduzida do alemão por João Barrento. A Família Schroffenstein, constitui uma reflexão belíssima sobre a queda da alma ante o desejo, sob a insídia da suspeição e da vingança, o sacrifício do amor como redenção impossível de alcançar e a corrupção da natureza humana perante a inevitabilidade do destino, para onde a humanidade caminha, por sua própria perdição e ruína. Texto avassaladoramente pessimista, constitui uma obra-prima do romantismo alemão e simultaneamente uma reflexão sobre a danação humana e a impossibilidade da felicidade, retratando o falhanço dos ideais românticos perante uma sociedade inevitavelmente corrompida pela avidez, cobiça e posse. A peça de Kleist, sob um cenário medievo, rude, atravessado por luzes cruas e intensas, ou por uma escuridão dominadora, descreve, com uma eloquência e um lirismo exacerbados, eficazmente transposto do alemão para o português por João Barrento, a anatomia do processo de destruição da alma e a progressão do rancor no coração humano, como praga sem cura, aqui simbolizado pelo dedo mindinho decepado de uma criança, tenra de idade e recém afogada, origem de uma espiral de horror e assassinato sem sentido ou razão. Luís Miguel Cintra, atento a dificuldade desta peça, extremamente longa e densa, considerada frequentemente irrepresentável, opta por um encenação sóbria, monástica, acompanhando o minimalismo da cenografia, onde a palavra, como elemento de intriga, funciona como o despoletar de toda a tragédia e o lirismo presente em todo o texto o suporte sólido para o desempenho dos actores.
Um obscuro contrato celebrado entre os ramos de uma mesma família, os Rossitz e os Warwand, separadas geograficamente por um lago rodeado de montanhas, em que na falta de descendência de ambos os lados, o ramo familiar sem descendentes cederá ao outro a riqueza e o poder (que nunca surgem verdadeiramente nominados, quantificados, mas apenas como motivação abstracta dos actos, do despoletar do inconsciente sob a razão) surge como pretexto para o verdadeiro tema central da peça: a destruição progressiva do carácter pela angústia, pela dúvida, pelo rancor, como se a palavra pudesse ser um cancro que avança pelo corpo com uma única nominação (o nome, extraído, sob tortura, de um dos presumíveis assassínios do filho varão dos Rossitz ou o nome proferido por João, amigo de Otto) e o erro uma fagulha que acende o fogo, numa única faísca, queimando, em sofrimento, o coração humano, até à ruína e à cinza. Renovação do amor condenado, numa revisitação moderna de Romeu e Julieta, A Família Schroffenstein, debruçando-se sobre a inocência do amor, serve-se de ambos os amantes como cordeiros de morte, espaço sacrificial, ante-câmara da solidão e da condenação humana.Com efeito, ambos os amantes, travestidos, morrem trespassados pelos próprios pais, numa cena de comédia de enganos, que perversamente retira aos personagens a dignidade do drama, a imersão na metáfora da tragédia. O amor é impossível de resgatar o homem da perversidade e sucumbe à solidão humana e ao próprio destino traçado pela humanidade, onde a ausência de Deus torna impossível a libertação e a esperança. O erro, indissociável da palavra, como veneno, é destruidor da razão e permanece invisível ante o coração dos homens. Com efeito é um personagem cego que identifica o erro no reconhecimento do corpo dos filhos mortos que não são reconhecidos pelos próprios pais, que choram não já a morte dos filhos, mas a sua própria morte, o vazio existencial. Como escreveu Luís Miguel Cintra, a propósito desta peça “A dúvida destrói a personalidade, afasta o ser humano da natureza inicial, pura e generosa. A sociedade passa a mover-se numa teia absurda de negros pensamentos, inseguranças, remorsos, obsessões de vingança, cegas violências. E a palavra engendra o erro, afasta o homem de si próprio.
Henrich von Kleist (1777 – 1811), suicidou-se, aos 34 anos, com um tiro na boca, depois de ter disparado contra o peito canceroso da sua amante, na consumação de um pacto suicida.
quinta-feira, julho 08, 2004
Fogo na Rebentação
Das embarcações atinge poucas casas
Habitadas
por terra enxuga finas línguas de areia
Tocam-te
Como eu queria na bandolete que pousas
No regaço
É muito dizer-te ou é pouco
- Amo-te.
Um osso de baleia numa fresta da montanha.
Gil de Carvalho,Tarantela & Viagens, 1998
Das embarcações atinge poucas casas
Habitadas
por terra enxuga finas línguas de areia
Tocam-te
Como eu queria na bandolete que pousas
No regaço
É muito dizer-te ou é pouco
- Amo-te.
Um osso de baleia numa fresta da montanha.
Gil de Carvalho,Tarantela & Viagens, 1998
quarta-feira, julho 07, 2004
Sintomas:
coração: em estado acelerado
saco lacrimal:oleado
corpo:expectante
olhos:lubrificados
ouvidos: atentos
pulmões:em extensão
Causa: Lhasa de Sela, concerto hoje, às 22 h, em Lisboa
coração: em estado acelerado
saco lacrimal:oleado
corpo:expectante
olhos:lubrificados
ouvidos: atentos
pulmões:em extensão
Causa: Lhasa de Sela, concerto hoje, às 22 h, em Lisboa
domingo, julho 04, 2004
UMA PEDRA NO CORAÇÃO
Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera
Coreia do Sul - 2003
103 min - Drama
Yeong-Su Oh (Actor / Actriz)
Kim Ki-Duk (Realização)
Kim Ki-Duk (Argumento)
Kim Ki-Duk (Actor / Actriz)
Jong-Ho Kim (Actor / Actriz)
Ha Yeo-Jin (Actor / Actriz)
I intend to portray the joy, anger, sorrow and pleasure of our lives through four seasons and through the life of a monk who lives in a temple surrounded only by nature on Jusan Pond. Five stories of Child Monk, Boy Monk, Adult Monk, Elderly Monk, and old Monk will coexist with images of each season. The changing qualities in living human beings, the meaning of maturity in our lives that are formed and how they develop, the cruelty of innocence, the obsession in desires, the pain in murderous intentions, and the emancipation in struggles …
Kim Ki-Duk
Por vezes existem imagens, cores, sons, silêncios, rostos, que nos entram pelos olhos adentro, contagiantes como uma doença, uma paixão que se apodere do corpo para perfurar a alma, uma racha no coração, que nos faz transbordar de claridade, luz e contemplação. O novo filme de Kim Ki-Duk, depois do visceral e atormentado "The Isle" afoga-nos num universo meditativo onde a natureza e o tempo assumem inexoravelmente um papel transcendente perante a fragilidade e efemeridade do homem, e onde a dor e o prazer, o conhecimento e a ignorância, a inocência e a morte, a obsessão e o desejo, se confrontam, perante a passividade eterna do céu, das árvores, das águas, das rochas e das montanhas. Filme de um lirismo extremo, avassalador, prende-nos para sempre os olhos ante a beleza de uma simplicidade extrema e devastadora, como se de repente a perfeição poderosa da natureza e dos seus ciclos imutáveis fosse algo que nos esmagasse e nos confortasse, matando as palavras, fazendo unir o silêncio à eterna serenidade da alma. Filme de uma simplicidade extrema, espiritual e religioso, onde o conhecimento e a libertação ascética iniciam o homem no conhecimento das verdades imutáveis da vida. Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera, filme de uma fotografia e luminosidade poética possante e envolvente, rouba, durante toda a sua duração, o espectador ao quotidiano da vida, envolvendo-o num estado encantatório, ondulante como o devir das estações no coração do tempo, entregando-o às montanhas, à neblina, às águas, à natureza primordial.
O palco de todo o filme é um enorme lago, rodeado de montanhas e coberto pelo céu, onde árvores milenares emergem vivas, semi afundadas nas águas, rodeado de uma vegetação verdejante, criaturas da natureza, regatos cristalinos, quedas de água e rochas agrestes. Da margem, duas portas de madeira, decoradas com duas figuras religiosas, abrem-se para o lago, como uma cortina que desvela a realidade e iniciam o espectador na passagem do tempo, entre as estações, distanciadas por vários anos, abrindo-se para os personagens e para o espectador, no início de cada estação. No meio do lago um pequeno templo budista, suspenso sob as águas, como uma ilha flutuante. No templo, um velho mestre budista e o seu discípulo, ao qual o velho monge procura ensinar as verdades essenciais da vida. É neste cenário, um templo de madeira no centro de um lago, onde duas figuras de pedra olham as margens, enquadrado por umas portas de madeira iniciáticas, que as personagens do filme vão interagir, deslocando-se num pequeno barco de madeira entre as margens do lago e o templo, ao ritmo das estações e da vida.
Na primeira estação, a Primavera, o velho mestre procura ensinar o seu discípulo, ainda criança, sobre os principais ensinamentos budistas e a inevitabilidade da dor. Figura omnipresente, o mestre budista contempla impassível, o despontar da perversidade infantil, ao observar o seu discípulo enrolar uma pedra, atada por um fio, primeiramente a um pequeno peixe, depois a uma rã e ainda a uma serpente. Atadas e obrigadas a carregar uma pedra, as pequenas criaturas da natureza, impossibilitadas de se moverem, sofrem, arrastando interminavelmente o peso da pedra. Na manhã seguinte, o velho monge, ata com uma corda uma pedra ao corpo da criança, seu protegido, seu discípulo, que imediatamente reconhece a maldade praticada. O monge diz-lhe então para encontrar e libertar os três animais do seu fardo, acrescentando que, se algum deles tiver morrido, carregará aquela pedra no seu coração para sempre. A criança, igualmente carregando a sua pedra, literalmente, encontra os três animas mas só um deles se encontra ainda vivo, pois o peixe encontra-se morto no fundo das águas e a serpente coberta de sangue, esfacelada nas pedras, também morta. A criança descobre então a inevitabilidade da dor e o fardo da vida, bem como a consequência no mundo de cada acção praticada, e chora, observada pelo mestre, no seu primeiro e brutal contacto com a dor. De uma simplicidade impressionante, e para além de qualquer mero ensinamento moral, toda a sequência, onde a intensidade emocional vive de pequenos apontamentos de uma fragilidade tormentosa, impõe-se pela violência do despontar da dor e do início do ciclo imutável da vida, onde o sofrimento e a morte, enquanto realidades dessa mesma vida, acompanharão para sempre o pequeno monge.
A segunda estação, o Verão, a que o espectador acede depois de abertas novamente as portas para o esplendoroso lago, como um ritual que se vai prolongar ao longo de todas as estações, apresentam-nos uma das mais belas sequências do filme onde o discípulo do mestre, agora com cerca de dezassete anos, vai perder a inocência e conhecer os prazeres do corpo com a rapariga que o velho monge aceitara, no templo, para curar de uma doença. Capítulo de uma enorme beleza, emocionalmente tocante, torna inesquecíveis os passeios de barco entre os adolescentes apaixonados, sob a luz das águas, os olhares trocados no exíguo espaço do templo, à noite, enquanto o mestre dorme, a chuva de verão, as cenas da cópula, (precedidas metaforicamente pelas duas cobras que o jovem discípulo encontra em acasalamento), entre as pedras, no barco, com a inocência do primeiro amor, sem troca de palavras, são extremamente simples, mas de uma eficácia comovente, pela naturalidade com que Kim Ki-Duk filma o progressivo envolvimento dos amantes. O capítulo, prenúncio da morte, termina com o regresso da rapariga à sua casa, já curada, e um novo ensinamento: a luxúria desperta o desejo de possuir, e a possessão conduz ao assassínio em defesa daquilo que se possui. O jovem discípulo, possuído pelo desejo, abandona o templo e o mestre e vai procurar no mundo a satisfação do prazer a que não consegue fugir e onde encontrará a perdição espiritual.
No terceiro capítulo, correspondente ao Outono, o jovem monge, já adulto, regressa ao templo, despido da inocência primordial, carregado de ódio e de sangue, pelo que passará por um processo de purificação, espiritual e corporal (fabulosa a imagem do corpo do discípulo pendurado por cordas e vergastado de sangue, suspenso no ar), antes de ser levado a cumprir uma pena como punição pelo assassínio cometido. Neste capítulo, é memorável a imagem quase surreal da pintura do Sutra libertador na madeira do chão do templo com a cauda do gato, e despois gravado na madeira com a faca do crime e posteriormente pintado como um quadro, uma caligrafia libertadora, uma oração em madeira. O capítulo termina com o auto imolamento do velho monge, no barco, sob uma pira de fogo, onde após a sua morte uma serpente desliza sob as águas, em direcção ao templo.
Na última estação, o Inverno, as portas abrem para um lago gelado, de uma beleza árida e impressionante, e assiste-se ao regresso do discípulo do velho monge, (aqui interpretado pelo próprio realizador) que avança para a redenção final e para o cumprimento do ciclo imutável do mundo, descobrindo o velho barco afundado sob o gelo e constatando a morte do mestre. Neste capítulo, encerra-se o ciclo, ao ser deixado ao seu cuidado uma criança, de tenra idade, que será o seu discípulo, à semelhança de si próprio. A mãe da criança, que morre afogada ao cair num buraco de gelo, vai precipitar a brutal redenção (aproximando-se aqui o budismo do catolicismo, num acto de contrição) do discípulo regressado que arrastará, atada ao seu corpo, uma enorme pedra pelas montanhas cobertas de neve, para ir depositar a estátua de uma divindade num rochedo de uma montanha distante, mas de onde se contempla o templo e as águas do lago, que ficarão sob o olhar da divindade, no ciclo imutável da natureza e na sucessão das estações. Consentâneo com a eternidade do ciclo da vida, o novo monge prepara-se para iniciar o seu papel, numa nova Primavera.
Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera, não é um filme perfeito, não será sequer uma obra-prima, mas perfura-nos de beleza e simplicidade, não escolhe o sempre perigoso didatismo religioso (lembre se que o realizador, católico de formação, inventou os cerimoniais budistas apresentados no filme, assim como as decorações e objectos do templo, que foi totalmente construído sob as suas indicações), é, sob a sua aparente simplicidade, dono de um simbolismo não imediato (por exemplo a cada estação corresponde um animal, na Primavera um cão, no Verão um galo, no Outono um gato, no Inverno uma serpente, e ainda no epilogo, uma tartaruga; a ausência de nomes para todas as personagens, o rosto escondido em panos da mulher que entrega o filho, a pedra como metáfora da dor existencial, mais do que física) e deslumbra-nos com uma espiritualidade a que acedemos sem fazer qualquer esforço e que abandonamos com dificuldade, quando o filme acaba, e as luzes da sala se acendem, como se ficássemos com uma ausência qualquer, uma dor indefinida, uma pedra no coração.
Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera
Coreia do Sul - 2003
103 min - Drama
Yeong-Su Oh (Actor / Actriz)
Kim Ki-Duk (Realização)
Kim Ki-Duk (Argumento)
Kim Ki-Duk (Actor / Actriz)
Jong-Ho Kim (Actor / Actriz)
Ha Yeo-Jin (Actor / Actriz)
I intend to portray the joy, anger, sorrow and pleasure of our lives through four seasons and through the life of a monk who lives in a temple surrounded only by nature on Jusan Pond. Five stories of Child Monk, Boy Monk, Adult Monk, Elderly Monk, and old Monk will coexist with images of each season. The changing qualities in living human beings, the meaning of maturity in our lives that are formed and how they develop, the cruelty of innocence, the obsession in desires, the pain in murderous intentions, and the emancipation in struggles …
Kim Ki-Duk
Por vezes existem imagens, cores, sons, silêncios, rostos, que nos entram pelos olhos adentro, contagiantes como uma doença, uma paixão que se apodere do corpo para perfurar a alma, uma racha no coração, que nos faz transbordar de claridade, luz e contemplação. O novo filme de Kim Ki-Duk, depois do visceral e atormentado "The Isle" afoga-nos num universo meditativo onde a natureza e o tempo assumem inexoravelmente um papel transcendente perante a fragilidade e efemeridade do homem, e onde a dor e o prazer, o conhecimento e a ignorância, a inocência e a morte, a obsessão e o desejo, se confrontam, perante a passividade eterna do céu, das árvores, das águas, das rochas e das montanhas. Filme de um lirismo extremo, avassalador, prende-nos para sempre os olhos ante a beleza de uma simplicidade extrema e devastadora, como se de repente a perfeição poderosa da natureza e dos seus ciclos imutáveis fosse algo que nos esmagasse e nos confortasse, matando as palavras, fazendo unir o silêncio à eterna serenidade da alma. Filme de uma simplicidade extrema, espiritual e religioso, onde o conhecimento e a libertação ascética iniciam o homem no conhecimento das verdades imutáveis da vida. Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera, filme de uma fotografia e luminosidade poética possante e envolvente, rouba, durante toda a sua duração, o espectador ao quotidiano da vida, envolvendo-o num estado encantatório, ondulante como o devir das estações no coração do tempo, entregando-o às montanhas, à neblina, às águas, à natureza primordial.
O palco de todo o filme é um enorme lago, rodeado de montanhas e coberto pelo céu, onde árvores milenares emergem vivas, semi afundadas nas águas, rodeado de uma vegetação verdejante, criaturas da natureza, regatos cristalinos, quedas de água e rochas agrestes. Da margem, duas portas de madeira, decoradas com duas figuras religiosas, abrem-se para o lago, como uma cortina que desvela a realidade e iniciam o espectador na passagem do tempo, entre as estações, distanciadas por vários anos, abrindo-se para os personagens e para o espectador, no início de cada estação. No meio do lago um pequeno templo budista, suspenso sob as águas, como uma ilha flutuante. No templo, um velho mestre budista e o seu discípulo, ao qual o velho monge procura ensinar as verdades essenciais da vida. É neste cenário, um templo de madeira no centro de um lago, onde duas figuras de pedra olham as margens, enquadrado por umas portas de madeira iniciáticas, que as personagens do filme vão interagir, deslocando-se num pequeno barco de madeira entre as margens do lago e o templo, ao ritmo das estações e da vida.
Na primeira estação, a Primavera, o velho mestre procura ensinar o seu discípulo, ainda criança, sobre os principais ensinamentos budistas e a inevitabilidade da dor. Figura omnipresente, o mestre budista contempla impassível, o despontar da perversidade infantil, ao observar o seu discípulo enrolar uma pedra, atada por um fio, primeiramente a um pequeno peixe, depois a uma rã e ainda a uma serpente. Atadas e obrigadas a carregar uma pedra, as pequenas criaturas da natureza, impossibilitadas de se moverem, sofrem, arrastando interminavelmente o peso da pedra. Na manhã seguinte, o velho monge, ata com uma corda uma pedra ao corpo da criança, seu protegido, seu discípulo, que imediatamente reconhece a maldade praticada. O monge diz-lhe então para encontrar e libertar os três animais do seu fardo, acrescentando que, se algum deles tiver morrido, carregará aquela pedra no seu coração para sempre. A criança, igualmente carregando a sua pedra, literalmente, encontra os três animas mas só um deles se encontra ainda vivo, pois o peixe encontra-se morto no fundo das águas e a serpente coberta de sangue, esfacelada nas pedras, também morta. A criança descobre então a inevitabilidade da dor e o fardo da vida, bem como a consequência no mundo de cada acção praticada, e chora, observada pelo mestre, no seu primeiro e brutal contacto com a dor. De uma simplicidade impressionante, e para além de qualquer mero ensinamento moral, toda a sequência, onde a intensidade emocional vive de pequenos apontamentos de uma fragilidade tormentosa, impõe-se pela violência do despontar da dor e do início do ciclo imutável da vida, onde o sofrimento e a morte, enquanto realidades dessa mesma vida, acompanharão para sempre o pequeno monge.
A segunda estação, o Verão, a que o espectador acede depois de abertas novamente as portas para o esplendoroso lago, como um ritual que se vai prolongar ao longo de todas as estações, apresentam-nos uma das mais belas sequências do filme onde o discípulo do mestre, agora com cerca de dezassete anos, vai perder a inocência e conhecer os prazeres do corpo com a rapariga que o velho monge aceitara, no templo, para curar de uma doença. Capítulo de uma enorme beleza, emocionalmente tocante, torna inesquecíveis os passeios de barco entre os adolescentes apaixonados, sob a luz das águas, os olhares trocados no exíguo espaço do templo, à noite, enquanto o mestre dorme, a chuva de verão, as cenas da cópula, (precedidas metaforicamente pelas duas cobras que o jovem discípulo encontra em acasalamento), entre as pedras, no barco, com a inocência do primeiro amor, sem troca de palavras, são extremamente simples, mas de uma eficácia comovente, pela naturalidade com que Kim Ki-Duk filma o progressivo envolvimento dos amantes. O capítulo, prenúncio da morte, termina com o regresso da rapariga à sua casa, já curada, e um novo ensinamento: a luxúria desperta o desejo de possuir, e a possessão conduz ao assassínio em defesa daquilo que se possui. O jovem discípulo, possuído pelo desejo, abandona o templo e o mestre e vai procurar no mundo a satisfação do prazer a que não consegue fugir e onde encontrará a perdição espiritual.
No terceiro capítulo, correspondente ao Outono, o jovem monge, já adulto, regressa ao templo, despido da inocência primordial, carregado de ódio e de sangue, pelo que passará por um processo de purificação, espiritual e corporal (fabulosa a imagem do corpo do discípulo pendurado por cordas e vergastado de sangue, suspenso no ar), antes de ser levado a cumprir uma pena como punição pelo assassínio cometido. Neste capítulo, é memorável a imagem quase surreal da pintura do Sutra libertador na madeira do chão do templo com a cauda do gato, e despois gravado na madeira com a faca do crime e posteriormente pintado como um quadro, uma caligrafia libertadora, uma oração em madeira. O capítulo termina com o auto imolamento do velho monge, no barco, sob uma pira de fogo, onde após a sua morte uma serpente desliza sob as águas, em direcção ao templo.
Na última estação, o Inverno, as portas abrem para um lago gelado, de uma beleza árida e impressionante, e assiste-se ao regresso do discípulo do velho monge, (aqui interpretado pelo próprio realizador) que avança para a redenção final e para o cumprimento do ciclo imutável do mundo, descobrindo o velho barco afundado sob o gelo e constatando a morte do mestre. Neste capítulo, encerra-se o ciclo, ao ser deixado ao seu cuidado uma criança, de tenra idade, que será o seu discípulo, à semelhança de si próprio. A mãe da criança, que morre afogada ao cair num buraco de gelo, vai precipitar a brutal redenção (aproximando-se aqui o budismo do catolicismo, num acto de contrição) do discípulo regressado que arrastará, atada ao seu corpo, uma enorme pedra pelas montanhas cobertas de neve, para ir depositar a estátua de uma divindade num rochedo de uma montanha distante, mas de onde se contempla o templo e as águas do lago, que ficarão sob o olhar da divindade, no ciclo imutável da natureza e na sucessão das estações. Consentâneo com a eternidade do ciclo da vida, o novo monge prepara-se para iniciar o seu papel, numa nova Primavera.
Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera, não é um filme perfeito, não será sequer uma obra-prima, mas perfura-nos de beleza e simplicidade, não escolhe o sempre perigoso didatismo religioso (lembre se que o realizador, católico de formação, inventou os cerimoniais budistas apresentados no filme, assim como as decorações e objectos do templo, que foi totalmente construído sob as suas indicações), é, sob a sua aparente simplicidade, dono de um simbolismo não imediato (por exemplo a cada estação corresponde um animal, na Primavera um cão, no Verão um galo, no Outono um gato, no Inverno uma serpente, e ainda no epilogo, uma tartaruga; a ausência de nomes para todas as personagens, o rosto escondido em panos da mulher que entrega o filho, a pedra como metáfora da dor existencial, mais do que física) e deslumbra-nos com uma espiritualidade a que acedemos sem fazer qualquer esforço e que abandonamos com dificuldade, quando o filme acaba, e as luzes da sala se acendem, como se ficássemos com uma ausência qualquer, uma dor indefinida, uma pedra no coração.